Fiança locatícia: possibilidade de exoneração do fiador em tempos de pandemia

Os contratos de locação são regidos por legislação especial, Lei nº 8.245/91, também conhecida como lei do inquilinato ou lei de locação, a qual estabelece diretrizes a serem seguidas tanto pelo locador quanto pelo locatário quando da realização de um contrato de locação.

A referida legislação prevê, ainda, as modalidades de garantias locatícias, elencadas no art. 37 da Lei nº 8.245/91, quais sejam: caução, fiança, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, cujas garantias locatícias têm como finalidade assegurar o adimplemento do contrato de locação firmado, isto é, busca evitar o prejuízo do locador com a eventual inadimplência do locatário para com os débitos locatícios.

Atualmente, apesar das diversas modalidades de garantias locatícias elencadas pelo legislador, a fiança é ainda a modalidade mais utilizada nos contratos de locação e caracteriza-se, nos termos do art. 818, do Código Civil pátrio, por um contrato em que “uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor caso este não a cumpra”.

Nesse sentido, considerando que a modalidade de fiança constitui um contrato acessório ao de locação, haja vista que o fiador firma um contrato de fiança com o locatário dentro do contrato de locação, a legislação prevê a possibilidade desse fiador exonerar-se da fiança assumida em algumas hipóteses, isto é, de deixar de garantir aquele contrato de locação.

Assim, tendo em vista o atual cenário vivenciado pelo mundo, em que a pandemia do COVID-19 vem afetando gravemente os diversos setores da economia, no mercado imobiliário não poderia ser diferente. Com a diminuição de renda e o índice de desemprego aumentando, é comum que os fiadores locatícios se sintam preocupados em ter que assumir uma dívida locatícia e logo já buscam entender como é realizada a exoneração da fiança prestada, com o fim de evitar que seus bens não sejam atingidos em caso de eventual inadimplência do afiançado/locatário.

É de conhecimento geral que o contrato de fiança é uma das exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família, previsto no art. 1º, da Lei 8.009/90[i], pois, conforme dispõe o art. 3º, inciso VII do mesmo diploma legal, nos casos de fiança concedida em contrato de locação, o bem imóvel do fiador, ainda que em caráter familiar, poderá ser penhorado para fins de pagamento de eventual dívida locatícia deixada pelo afiançado.

Tal disposição legal gera na figura do fiador uma insegurança que, por sua vez, é intensificada pelo cenário econômico que o Brasil e o mundo se encontram: um cenário em que a taxa de desemprego aumenta e, consequentemente, majora as chances de o locatário/afiançado não conseguir arcar com suas despesas locatícias, fazendo com que os bens do fiador fiquem a mercê das responsabilidades do contrato de fiança assumido.

Entretanto, só é possível o fiador exonerar-se de sua responsabilidade após o término da locação, tendo em vista que o art. 39 da Lei de locação prevê que “qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado.”

Além disso, em análise conjunta do dispositivo retromencionado, o art. 40, inciso X da Lei de locação, prevê que o locador poderá exigir novo fiador nos casos em que houver a prorrogação da locação por prazo indeterminado e o mesmo tiver sido devidamente notificado pelo fiador acerca da sua intenção de desoneração, ficando este obrigado pelas responsabilidades e efeitos decorrentes da fiança pelo lapso temporal de 120 (cento e vinte) dias após essa notificação do locador.

Dessa forma, tem-se dois cenários que precisam ser considerados. O primeiro, é de que quando a locação se dá por prazo indeterminado e o fiador deseja manifestar sua intenção de desoneração da fiança ao locador, o prazo de 120 (cento e vinte) dias começará a ser contabilizado a partir da data do recebimento da comunicação pelo locador, em observância ao disposto no art. 40, inciso X, da Lei de Locação.

Em um segundo cenário, nos casos de um contrato de locação por prazo determinado, o fiador poderá exonera-se do encargo assumido, notificando o locador durante a vigência do contrato[1]. Entretanto, tal exoneração somente produzirá seus efeitos após a indeterminação do prazo locatício, tendo em vista que a fiança prestada deve perdurar pelo tempo convencionado de locação.

Nesse sentido e de maneira pontual e acertada, decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial (REsp 1.798.924/RS) que “os efeitos desta exoneração somente serão produzidos após o prazo de 120 dias da data em que se tornou indeterminado o contrato de locação, e não da notificação.” (p. 12). E destacou, ainda:

A melhor interpretação do art. 40, inciso X, da Lei 8.245/91 é a de que, primeiro, não é imprescindível que a notificação seja realizada apenas no período da indeterminação do contrato, podendo, assim, os fiadores, no curso da locação com prazo determinado, notificarem o locador de sua intenção exoneratória, mas os seus efeitos somente poderão se projetar para o período de indeterminação do contrato. (p. 12).[ii]

Assim, além de aguardar a finalização do contrato, para que haja a exoneração do fiador das responsabilidades da fiança prestada, deve o mesmo notificar o locador, dando-o ciência da exoneração, ficando obrigado ainda, por todos os efeitos da fiança, pelo lapso temporal de 120 (cento e vinte) dias a contar da data de em que o contrato de locação tornou-se indeterminado ou da data de recebimento da notificação pelo locador.

É necessário e essencial, no entanto, pensar, antes de qualquer tomada de decisão, nas consequências e efeitos dessa exoneração do fiador, não só no contexto do locatário, mas também no cenário do mercado imobiliário.

A hipótese de exoneração da fiança previsto na legislação, apesar de possível, ocasionará consequências ao afiançado/locatário, o qual, após a exoneração, poderá ser notificado pelo locador para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresente novo fiador ou realize a substituição da modalidade de garantia do contrato de locação por quaisquer uma daquelas previstas no art. 37 da Lei nº 8.245/91 e já comentadas anteriormente, sob pena de desfazimento da locação conforme previsão do art. 40, inciso IV e parágrafo único do mesmo diploma legal supramencionado, in verbis:

Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos:

IV – exoneração do fiador;

(…)

Parágrafo único. O locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação.

Assim, com o cenário de uma economia recessiva, dificilmente o locatário conseguirá encontrar um novo fiador para substituir e conseguir manter a garantia contratual, podendo ocasionar no desfazimento da locação, o que, de certa forma, é tão ruim para o locatário, quanto para o locador que, com as dificuldades do mercado imobiliário, terá que tentar novamente um novo contrato de locação e, provavelmente, com redução do valor do aluguel, haja vista a baixa demanda de locações em razão do contexto de pandemia e suas consequências econômicas.

Tem-se que uma das alternativas para o locador, no caso da impossibilidade de o locatário oferecer novo fiador ao contrato, seja a de substituição da modalidade de garantia por qualquer outra daquelas dispostas no art. 37 da Lei de locação, como forma de manter vigente a locação sem deixar o contrato desprovido de uma garantia locatícia.

Dessa forma, é importante considerar que o cenário atual é um tanto quanto delicado para todas as partes integrantes da relação contratual, seja como locador, locatário/afiançado ou fiador, sendo necessário, sempre que possível, que haja uma transparência e uma compreensão maior entre as partes, em razão de uma força maior que extrapola a vontade das mesmas, de tal forma que os métodos extrajudiciais e consensuais ou até mesmo uma renegociação da dívida e ajustamento do contrato, as medidas mais razoáveis e adequadas, buscando-se evitar ou, pelo menos, minimizar os impactos de uma exoneração de fiador no contexto particular de cada parte integrante do contrato, bem como no cenário do mercado imobiliário.

[1] Aconselha-se que tal pedido de exoneração seja realizado mais no final do contrato.

[i] Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

[ii] REsp 1.798.924/RS, pág.12.

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