Comentários sobre a Lei nº 14.193/2.021 (Lei da Sociedade Anônima do Futebol)

Introdução

O objetivo deste texto é apresentar uma visão simples e didática de alguns pontos da Lei nº 14.193/2.021, conhecida como a Lei da SAF (Sociedade Anônima do Futebol)[1], certamente não há como fugir de termos técnicos porque o texto faz a análise de uma norma jurídica, mas isto será evitado. Assim, ficam advertidos os leitores especializados no tema que a linguagem rebuscada e tecnicista estará relegada à segundo plano.

 

Como surgiu a norma e qual seu objetivo?

A Lei foi uma iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco (MG), apresentada em 10/10/2019, recebendo a seguinte identificação: Projeto de Lei (PL) nº 5.516/2.019.[2]

A justificativa para proposição do Projeto de Lei foi o fato de o futebol brasileiro gerar bilhões de reais em faturamento, empregar milhares de pessoas (direta e indiretamente) e movimentar uma grande indústria de bens de consumo e prestação de serviços. Além disso, o Senador Mineiro fundamentou a necessidade de aprovação da nova Lei para permitir a modernização das regras de governança dos clubes brasileiros.

Em resumo, a Lei pretende instituir normas que visam auxiliar o desenvolvimento da indústria do futebol no Brasil e garantir maior controle na gestão dos clubes de futebol.

 

Tramitação e publicação

Para a criação de uma Lei é necessário que a proposta apresentada pelos congressistas (deputados e senadores) respeite um percurso legal próprio. Dessa maneira, a lei da SAF tramitou entre 10/10/2019 (data de sua apresentação) e 09/08/2021 (data da sua publicação).

Neste espaço de tempo muitos debates foram travados no congresso nacional, vários legisladores puderam contribuir para construção da norma, conversas junto a entidades que representam clubes foram feitas e atletas foram consultados. O texto inicialmente apresentado em 10/10/2019 foi modificado, sendo a justificativa para a alteração exposta no relatório final realizado pelo Senador Carlos Portinho (RJ).[3]

No dia 09/08/2021 a Lei foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) recebendo a numeração 14.193/2.021.

 

Composição da legislação

A partir de agora abordarei os pontos que entendo mais relevantes, sobretudo para o leitor torcedor.

De maneira resumida, a Lei possui 16 (dezesseis) artigos que são divididos em 3 (três) capítulos. O primeiro capítulo é denominado DA SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL; o segundo DISPOSIÇÕES ESPECIAIS; e o terceiro DISPOSIÇÕES FINAIS.

 

Pontos relevantes da Lei nº. 14.193/2.021

Antes de iniciar essa explicação é importante destacar que a Lei da SAF cria um novo tipo societário no ordenamento jurídico brasileiro, em outros termos, uma nova modalidade de pessoa jurídica que pode ser constituída para o desenvolvimento exclusivo de atividades ligadas ao futebol.

Quando uma ou mais pessoas desejam explorar uma empresa é possível a criação de uma pessoa jurídica para tal finalidade. Tal pessoa jurídica (PJ) pode ser concebida sob formas societárias diversas, sendo as mais conhecidas a Sociedade Limitada (LTDA) e a Sociedade Anônima (SA). Isso posto, o que a Lei da SAF permite é a criação de uma PJ com finalidade e regras específicas para clubes de futebol.

Dito isso, a primeira informação relevante é a determinação de que a PJ da SAF deve ser obrigatoriamente constituída para a prática de futebol feminino e masculino. É muito importante esclarecer que a SAF terá como OBRIGAÇÃO desenvolver e fomentar o futebol feminino, assim, todos os clubes que virarem SAF deverão possuir time feminino.

Outro ponto importante é como será criada a SAF. A lei prevê três hipótese: transformação da associação em SAF; cisão (separação) do departamento de futebol do clube, ou seja, transfere-se apenas as responsabilidades do futebol para a SAF e manutenção das demais atividades (ex: clubes sociais e outras modalidades esportivas) com a associação original[4]; iniciativa, em outras palavras, criar uma SAF do zero.

Sobre a constituição dos clubes em associação é importante sublinhar que o futebol não é uma atividade profissional desde sua concepção, logo, a maioria dos clubes brasileiros foram constituídos sob a modalidade associativa, quer dizer, uma reunião de pessoas para desenvolver uma determinada atividade sem finalidade LUCRATIVA. Diante da novel legislação, abre-se a oportunidade de tais associações serem convertidas em empresas com finalidade LUCRATIVA.

Outro destaque é a situação envolvendo a mudança do nome, cores, emblemas, marca e, até mesmo, cidade. Na hipótese de cisão a Lei prevê que para acontecer tal mudança a associação original deverá participar da tomada de decisão votando a favor da modificação.

A partir da transferência do departamento de futebol para a nova administração o antigo presidente e os conselheiros da associação não terão mais poder de decisão, portanto, toda decisão relacionada ao futebol será de responsabilidade da gestão da SAF. A SAF deverá possuir um conselho de administração e um conselho fiscal. Em relação a tal ponto vale uma ressalva: a Lei veda a participação de membros da associação originária em tais conselhos. Este ponto é muito importante, pois exclui a possibilidade de antigos conselheiros continuarem a participar das tomadas de decisão do futebol.

Daqui em diante abordarei um pouco sobre a seção IV do primeiro capítulo da Lei. Na minha opinião estamos diante da parte mais importante de toda a legislação, pois cuida das obrigações da SAF.

Inicialmente, vale realçar que a SAF não responde por obrigações da pessoa jurídica original, exceto quanto às questões relacionadas ao futebol, em suma contratos de natureza trabalhista e cível. Existe uma lacuna sobre as dívidas tributárias, pois a Lei não tratou de especificar se tais dívidas serão transferidas para a SAF[5].

Uma situação relevantíssima que precisa ser esclarecida se refere à responsabilidade pelo pagamento das dívidas que foram transferidas para a SAF. A Lei é clara ao estabelecer que a SAF responderá por tais débitos, porém, deverá ser respeitado um procedimento específico previsto na legislação. O procedimento é aquele inserido no art. 10 da Lei que impõe o pagamento das dívidas da seguinte forma: a) destinação de 20% das receitas mensais da SAF; b) destinação de 50% sobre remuneração recebida pela associação original na condição de acionista.

Para a quitação das dívidas a associação original fará um acordo com os seus credores por intermédio de um procedimento denominado Regime Centralizado de Execuções.

O que seria esse procedimento? A associação original realiza uma apuração das dívidas; apresenta o requerimento para o tribunal competente; o tribunal convoca os credores e em 60 dias a associação apresenta uma proposta de pagamento respeitando o critério dos 20% da receita da SAF e 50% da remuneração recebida pela associação original decorrentes das cotas que possui na SAF.

Quem recebe primeiro? A ordem é a seguinte: 1) idoso; 2) pessoa com doença grave; 3) dívidas trabalhistas inferiores a 60 salários mínimos; 4) gestante; 5) pessoas que sofreram acidente de trabalho; 6) credores que aceitarem reduzir a dívida em valor igual ou superior a 30%. Nesse tema vale salientar que as dívidas de natureza trabalhistas terão prioridades sobre as de natureza cível.

Qual o prazo para pagamento? No plano que será apresentado pela associação poderá ser definido um prazo inicial de 6 anos para pagamento dos débitos. Se a associação comprovar que 60% da dívida foi paga no período de 6 anos, será permitido a prorrogação do pagamento do remanescente em até 4 anos. Portanto, o prazo total para pagamento poderá ser de até 10 anos.

Como fica a responsabilidade da SAF e seus representantes pelo pagamento de tais dívidas? Importante esclarecer essa questão. Vamos separar essa informação em dois pontos: 1) responsabilidade pessoal do proprietário da SAF; 2) responsabilidade da pessoa jurídica da SAF.

Ocorrerá a responsabilidade do proprietário quando o acordo que explicamos acima não for cumprido. Ou seja, durante os 6 ou 10 anos do parcelamento, se houver inadimplência o proprietário da SAF poderá responder solidariamente pelo pagamento da dívida. É importante esclarecer que a responsabilidade está limitada aos valores que Lei determina que serão utilizados para pagar os acordos, isto é, 20% das receitas recorrentes da SAF e 50% da remuneração recebida pela associação original.

Exemplo: A associação realizou um acordo em que deverá arcar com uma parcela mensal de 1 milhão de reais. O pagamento não é realizado pela associação. O valor de 1 milhão de reais deverá ser pago pelo proprietário da SAF.

A outra hipótese é a responsabilidade da PJ da SAF. A Lei prevê que se não houver o pagamento em razão do acordo feito pela associação após o período de 6 ou 10 anos – dependendo do acordo – a SAF pode se tornar subsidiariamente responsável.

Se o leitor observar, no parágrafo anterior citei que a responsabilidade é solidária, agora foi mencionado a responsabilidade subsidiária. Há uma diferença técnica, qual seja, na solidária o credor pode cobrar o devedor original e do corresponsável ao mesmo tempo (no exemplo acima pode cobrar da associação original + proprietário do SAF). Por outro lado, na responsabilidade subsidiária primeiro cobra-se o devedor original e não havendo sucesso em receber faz-se a cobrança do corresponsável. Isso significa que o credor teria que esgotar todos os meios judicias para receber o seu crédito, inclusive com a tentativa de expropriação de bens móveis e imóveis da associação original, o que leva anos para concretizar no judiciário brasileiro.

No decorrer a Lei da SAF trata de questões pontuais como é o caso do Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE) que é conceituado pela como “medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação”. O PDE estabelece regras que versam, principalmente, sobre a formação de novos atletas.

Por fim, a Lei aborda regras sobre a tributação específica, acredito que para incentivar os clubes a converterem em SAF e atrais novos investidores para o mercado do futebol; finaliza aduzindo que os passivos tributários anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol não incluídos em programas de refinanciamento do governo federal poderão apresentar proposta de transação nos termos da Lei nº 13.988/2.020 que é a Lei da Transação Tributária

 

Conclusão

Na opinião deste autor a Lei da SAF é salutar, porque é uma ferramenta que poderá ser utilizada para recuperar clubes em condições financeiras precárias através de aporte financeiro e a implementação de um modelo de gestão sustentável.

Vale dizer que a conversão da associação em clube-empresa não é sinônimo de sucesso, existem inúmeros exemplos de insucesso ao redor do globo e no Brasil clubes formatados sob o modelo associativo conseguiram obter sucesso gerencial e esportivo, restando comprovado que a formatação jurídica não é uma regra aritmética de êxito ou fracasso.

O torcedor precisará se conscientizar, visto que as novas administrações não tomarão medidas populistas, vez que experiências estrangeiras demonstram que o modus operandi de investidores do futebol é conservador e o trabalho visa a obtenção de sucesso a médio/longo prazo.

Não só o torcedor será combalido com a nova realidade do seu clube, mas, jogadores, empresários e demais partícipes da indústria do futebol serão impactados pelo cenário inédito.

De fato, tudo ainda é muito embrionário, pois a legislação é recente e será a primeira experiência de conversão de grandes clubes em empresas no futebol brasileiro. Apesar da existência de vários clubes-empresa no Brasil, com a edição da nova Lei a perspectiva é que clubes tradicionais adotem o novo regime jurídico, o que já foi realizado por Cruzeiro, Botafogo e América/MG.

O que nos resta é acompanhar as cenas dos próximos episódios e, como amante do esporte, torcer para que essa mudança de paradigma seja exitosa.

[1] Daqui em diante usarei apenas o termo SAF para a menção da Sociedade Anônima do Futebol.

[2] Para acessar a proposta apresentada pelo Sen. Rodrigo Pacheco clique no link a seguir: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8023943&ts=1634829035765&disposition=inline

[3] Para acessar o relatório do Sem. Carlos Portinho clique no link a seguir: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8977839&ts=1634829037028&disposition=inline

[4] Utilizarei a terminologia associação original para indicar o clube originário. Esse caso ocorre quando a constituição da SAF sob a modalidade cisão. Isto é, o clube de futebol cede o direito de exploração do departamento de futebol para a SAF. São os exemplos do Botafogo e do Cruzeiro: SAF é a empresa do John Textor/Ronaldo; associação original é o Batafogo/Cruzeiro fundado sob a modalidade associativa.

[5] Sobre este ponto caberia uma análise mais técnica, mas vamos seguir o proposito simplista do texto.

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